quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Em defesa da arte de rua

10 anos de Maracatu Truvão. Parque da Redenção, setembro de 2014.
Por Ismael Oliveira*

“A licença foi tirada pelo Barão de Caxangá” nos canta e nos ensina uma antiga toada/loa de maracatu. Os significados desses cantos são diversos e podem mudar conforme a época, sendo ressignificados constantemente. Mas uma das histórias que ouvimos a respeito dessa loa faz referência ao tempo em que os maracatus do Recife precisavam de uma autorização para saírem às ruas. De certa forma, hoje ainda precisam, mas de uma maneira mais maquiada, dentro do teatro democrático. Essa loa-carteiraço apresentava, a qualquer um que quisesse desautorizar o baque, o nome de quem lhes autorizou a sair na rua com sua corte real: Barão de Caxangá. Em outras palavras, “não se metam com a gente” e passava a Nação com seu batuque, Rei, Rainha e corte.

Semana passada, a publicação da minuta do decreto que regulamente a Lei do Artista de Rua de Porto Alegre nos fez lembrar dessa época em que não tínhamos atingido essa, ainda que precária, democracia em que vivemos. Época dos códigos de posturas municipais de cidades de todo Brasil que proibiam tambores, batuques, danças. Como em Belém do Pará, em 1880 “Art. 107. É proibido, sob pena de 30000 réis de multa: Parágrafo 1º Fazer bulhas, vozerias e dar altos gritos sem necessidade. Parágrafo 2º Fazer batuques ou samba”. Ou em Porto Alegre, no final do século XIX também “Artigo 48: são proibidos os zungus ou batuques. Os moradores das casas onde eles se fizerem, ou chefes dos mesmos zungus, serão multados em 10$ ou 10 dias de cadeia. Artigo 122: Ficam proibidos os candomblés ou batuques e danças na Várzea, chácaras ou outro lugar. Pena de 16$ de multa ao dono da casa ou chefe de batuque e sendo escravo a 25 açoites”.

A referida minuta de 2015, da semana passada, isso mesmo, semana passada, definia uma região em Porto Alegre- o centro histórico- em que seria proibido o uso de percussão para fazer arte na rua. Além disso, criava regras que inviabilizariam a prática percussiva, especificamente, e a vida do artista de rua, em geral, em parques e espaços públicos.

Após a esperada repercussão entre os artistas de rua da cidade e seus admiradores, a prefeitura voltou atrás pedindo que fosse desconsiderada tal minuta publicada, abrindo um período de debates sobre o tema. Isso foi o que disse Sebastião Melo, vice-prefeito, através de reportagem veiculada pela RBS.

A tradição porto-alegrense em reprimir manifestações populares nos legitima a classificar tal atrapalhada publicação da minuta não como apenas uma falha de um assessor, mas como um ato falho da administração. Revelaram-se as intenções. Esse ato falho, nos lembra a tradição de setores de Porto Alegre de incompreender o carnaval popular, por exemplo, desde o fim do século XIX, como mostra Alexandre Lazzari no livro “Coisas para o povo não fazer”. O carnaval da cidade, que teima vibrantemente em ser popular, é contido teimosamente por seus governantes, nessas tacanhas tentativas de adestramento das manifestações, ora escondendo-as, ora proibindo desnecessariamente algumas de suas práticas, ora intrometendo-se desastrosamente, acabando por descaracterizar o que vinha sendo feito de forma espontânea e saudável por artistas e foliões. A incompetência de nossa municipalidade em gerir o bom uso do espaço público fica evidente ano após ano.

Bloco popular do carnaval porto-alegrense do início do séc XX. Acervo do Museu Joaquim José Felizardo, Fototeca Sioma Breitman, retirado de "Coisas para o o povo não fazer" de Alexandre Lazzari

Mas parece que paira por aqui uma eficiência, acima da média brasileira, em calar a cultura popular. Onde estão as festas de coroações de reis negros dessa cidade? Luciana Prass mostrou, em “Maçambiques, Quicumbis e Ensaios de Promessas”, correspondências em que o Estado do Rio Grande do Sul se posicionava a não registrar a cultura negra em um estudo folclórico que seria feito na década de 40. Escolha política, desenhando a imagem do estado da forma que bem entendesse. O negro não está no quadro de Aldo Locatelli exposto no Palácio Piratini que mostra as etnias formadoras do estado. Que cidade é essa que não deixa permanecer tradições populares, de rua, como os Cocumbis e Candombes da Mãe Rita, na Cidade Baixa, do século XIX? Obviamente que ela tem herdeiros culturais na cidade, principalmente herdeiros religiosos. Mas trata-se de pensar na cultura de rua que emerge de um encontro desses. A eficiência da cidade está em calar tradições periféricas, ou tradições não amparadas por um certo grupo social porto-alegrense que tem o poder de decidir unilateralmente qual a cidade que eles querem.

Coleta para a manutenção da igreja de Nossa Senhora do Rosário em Porto Alegre", 1828, Jean Baptiste Debret

O Maracatu Truvão nasceu em 2004, mas, se estivéssemos sob a vigência de um decreto deste tipo, não teríamos nascido. Pois se o Odomodê foi a casa que nos abrigou e que nos deu a previsibilidade das atividades, uma rotina, permitindo que amadurecêssemos e crescêssemos, a rua, os parques, em especial a Redenção, foram os espaços que nos permitiram nascer e dar os primeiros passos. Se agora alternamos aparições em locais como o Odomodê e a rua, durante nossos primeiros 3 anos, aparecíamos quase que exclusivamente na rua, na Redenção. Esse era nosso espaço de ensaio, de apresentação, geograficamente acessível a um grupo de pessoas que vinha dos mais variados pontos da cidade e região metropolitana, do Lami, a Alvorada.

Terminado um ensaio, que frequentemente invadia a noite do parque, lá perto do chafariz central para não incomodarmos a vizinhança, não sabíamos ao certo quando teríamos o próximo encontro, com quantas pessoas seria. Como faríamos para avisar a prefeitura, com 10 dias de antecedência, de que iríamos para a rua ensaiar? Essa burocracia esgoelaria qualquer tentativa de formação de um grupo como o nosso.

Estou advogando em causa própria? Sim. Mas lembrando que disponibilizar arte de forma democrática é raridade, em tempos que auditórios públicos da cidade são loteados para eventos cujos ingressos chegam a setecentos reais. Sem esquecer das centenas de pessoas que já tiveram a oportunidade de dividir aprendizados musicais, de iniciar o mergulho em uma cultura, nas nossas oficinas; a quantidade de pessoas que já usufruiu de nossas apresentações gratuitamente ou a preços acessíveis. Sem esquecer nas dezenas de integrantes do grupo que já embarcaram em viagens para as comunidades recifenses que abrigam as tradicionais Nações de Maracatus, para aprender, vivenciar, trocar, e arejar nossos ares com outros olhares possíveis, dialogando com a cultura local.

Se por um lado temos a tradição de uma máquina pública a serviço de um interesse elitista, da censura às manifestações populares e da especulação imobiliária, por outro lado temos a tradição pulsante e teimosa de uma cultura vibrante, que já perdeu diversos rounds nessa queda de braço, mas que jamais se entrega.

O Maracatu Truvão participará atentamente do diálogo aberto para a (re)construção da minuta desse decreto.

Além das instâncias criadas para o debate, como a Audiência Pública dessa quarta, 18h30, no Teatro Renascença, colocaremos os tambores na rua, sexta-feira, 28/08, nos juntando a inúmeros outros coletivos pela valorização e respeito a arte de rua.

Continuaremos cantando, dançando, aprendendo e difundindo a cultura percussiva.

“Ô arreda do caminho que o Leão já quer passar

O mundo é largo dá pra todos vadiá”.





*Ismael Oliveira é integrante do Maracatu Truvão desde sua fundação, em 2004

2 comentários:

  1. Todo apoio a arte de rua. Todo o apoio a cultura negra. Todo apoio aos maracatus. Todo apoio ao Truvão. Se precisarem de alguma coisa contem com o maracatu Arrasta Ilha

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